Com ares de ficção e roteiro digno de um thriller de ação, eleição mais imprevisível da história recente teve explosão de avião, viradas surpreendentes e decisão apertada
Há cerca de um mês, o Brasil conhecia o resultado daquela que foi a disputa eleitoral mais emocionante dos últimos tempos. Com 54 milhões e meio de votos, a presidenta Dilma Rousseff ocupará o palácio do planalto por mais quatro anos. A petista alcançou 51,6% dos votos válidos, contra 48,3% do candidato pelo PSDB, Aécio Neves, com uma diferença de cerca de 3,5 milhões.
Em uma das apurações mais emocionantes, Dilma é reeleita com 51,6% dos votos
Para alguns, a disputa não acabou. Dada a estreita margem, setores oposicionistas mais radicais falam em impeachment, em divisão do país e, por fim, chegam até mesmo a clamar por um golpe militar. Ao contestarem o resultado do pleito, deslegitimam também os votos da oposição, que ainda que derrotada, saiu fortalecida. O flerte ao golpismo precisa ser respondido com uma apaixonada defesa da democracia.
Apesar da alta temperatura e da dureza do embate, o Brasil sai melhor do que entrou. Mais politizado.
30 dias é pouco tempo para esquecer, mas o suficiente para se analisar, com algum distanciamento, esse momento tão cheio de elementos marcantes, rico sob qualquer ponto de vista. Para melhor compreender, o primeiro passo é rememorar.
Prólogo – O gigante estava dormindo?
Em junho de 2013, sem que pudesse se prever, o país é tomado por uma onda de protestos contra a tentativa de aumento na tarifa do transporte público. As mobilizações eram articuladas através das redes sociais, assemelhando-se, com isso, a fenômenos ocorridos em outras partes do mundo, como o movimento dos Indignados, na Espanha, o Ocuppy Wall Street, nos EUA, ou ainda, a Primavera Árabe, que balançou com ditaduras em todo o Oriente Médio.
Em São Paulo, epicentro da revolta, o que fez entornar o caldo foi a violência policial na repressão aos protestos, na quinta-feira de 13 de junho. Ali, a democracia corria risco. As cenas do uso indiscriminado da força, do cassetete, das balas de borracha e bombas de efeito moral contra jovens militantes desarmados e jornalistas correu a internet. Nela também, nas novas mídias, articulava-se a resposta. Na segunda-feira seguinte, milhões tomam às ruas das principais cidades do Brasil para se manifestar, não só contra a qualidade do serviço público de transporte, mas pelo direito de se manifestar.
O movimento teve êxito enorme em conseguir barrar o aumento da tarifa. Uma verdadeira conquista democrática. Não só em São Paulo, como nas demais capitais e cidades médias, os preços das passagens foram mantidos, em alguns casos até reduzidos, retirando dos governantes de todas as esferas promessas de investimentos em mobilidade urbana. Na capital paulista, por exemplo, acelerou-se a implantação de corredores de ônibus e ciclovias, que apesar de toda polêmica, impactam positivamente na qualidade do deslocamento da grande maioria da população que não conta com o automóvel.
As mobilizações prosseguiam, mas mudando, pouco a pouco, de figura. Sem mais um foco determinado, os protestos reivindicavam serviços públicos ‘padrão Fifa’ e uma parte radicalizava. Os ‘black blocs’, que surgem como retaliação à violência policial, passam a protagonistas. O mundial de futebol se aproximava, em um clima de tensão, desânimo e pessimismo. “Imagina na Copa…”
A grande mídia fez um brilhante trabalho em disseminar o mal-estar. Estádios ficariam prontos em 2030. O caos aéreo tinha data para acontecer. As cidades parariam. Turistas seriam afugentados e acuados pela violência urbana. Tudo politicamente direcionado. Esses mesmos veículos não deixariam dúvidas sobre suas convicções políticas logo ali mais à frente, no processo eleitoral que se avizinhava. Sobre as manifestações, os grandes jornais e institutos de pesquisa parceiros tinham o diagnóstico: a suposta vontade de ‘mudança’ era medida em percentual pelo Datafolha e o Ibope e manchetada por Folha, Estadão e O Globo, e pelas Tvs, na clara tentativa de confundir as mudanças sociais reivindicadas pela população com mudança do grupo e partidos que ocupam o poder, em especial, o governo federal.
Apesar da torcida contra, quando a bola rolou o país se encantou. A Copa das Copas. O futebol voltando para casa. Dentro de campo, foi oferecido um espetáculo de elevado nível técnico e com todos os componentes de emoção. O gol de cabeça do holandês voador é uma das imagens marcantes desse mundial. Para nós, brasileiros, não foi o final esperado e nem gostamos de lembrar. Fora de campo, aeroportos e rede hoteleira deram conta do recado. O resto ficou por conta do incomparável espírito hospitaleiro do povo, que contagiou turistas de todo o mundo, que prometem voltar.
Passada a Copa, adentrava-se à corrida eleitoral marcada, curiosamente, por certo marasmo e previsibilidade. A presidenta Dilma liderava com folga, alcançando de 36 a 41 pontos, enquanto Aécio, que não empolgava, rodava na casa dos 20 pontos. Ainda menos conhecido, Eduardo Campos, do PSB, não alcançava 5% das intenções de votos, entre julho e início de agosto.
O desastre
No dia 13 de agosto, quando a campanha completava uma semana do seu início oficial, um trágico acidente de avião, no litoral de São Paulo, vitimava o candidato Eduardo Campos, além de integrantes da campanha e pilotos, em um total de sete mortos. O impacto da tragédia bagunça por completo o cenário eleitoral, que recomeça do zero na semana seguinte, agora com uma nova peça.
Se Eduardo Campos, ex-governador de Pernambuco e ministro de ciência e tecnologia do governo Lula, buscava apenas colocar seu nome e assim se fazer conhecer nacionalmente, com vistas às eleições futuras, e oferecer um pouco de frescor à disputa polarizada por PT e PSDB, sua substituta na chapa vinha com maior sede de poder.
Oriunda dos movimentos ambientais e sociais dos seringueiros da Amazônia, Marina Silva ganha projeção como senadora pelo PT do Acre e, posteriormente, como ministra do meio-ambiente do governo Lula. Candidata pelo PV à presidência da república em 2010, Marina amealhou quase 20 milhões de votos no primeiro turno, feito notável, mas insuficiente para leva-la ao segundo turno.
Insatisfeita com as disputas internas pelo controle do PV, Marina sai em busca de um partido para chamar de seu. A Rede – partido que não deveria ter cara de partido, mas que na prática seria tal qual os demais – se perde em meio às discussões dos ‘sonháticos’ e não consegue colher as assinaturas necessárias em tempo hábil para garantir o registro da legenda na Justiça Eleitoral. O sonho parecia ter encruado.
Marina e ‘marineiros’ são abrigados dentro do PSB, e Eduardo Campos a faz sua vice, interessado no capital político acumulado pela candidata na eleição anterior. Esse quadro estabelece Marina como substituta natural após a morte de Eduardo Campos, ainda que fosse um nome sem qualquer ligação orgânica com os socialistas.
Ascensão e Queda de Marina Silva
Por conta do clima de comoção pelo fim trágico do ex-governador de Pernambuco e do ‘recall’ trazido do pleito anterior, Marina passa como uma flecha por Aécio, disputando a liderança das intenções de voto no primeiro turno com Dilma e a superando nas sondagens para o segundo turno. Graças a certo afastamento da política institucional, por não ocupar nenhum cargo público nos quatro anos anteriores, a neosocialista Marina não sofreu com o choque de popularidade decorrente das manifestações de junho, que afetaram a todos os demais atores do cenário político.
Despontou como favorita, quando começou a etapa da desconstrução. A campanha petista ataca as íntimas relações de Marina com o grande capital e com o conservadorismo de setores evangélicos, representados respectivamente por Neca Setúbal, herdeira do Banco Itaú, e Silas Malafaia, estridente pastor midiático da ‘Vitória em Cristo’.
A ‘nova política’ mais confundia do que explicava. Podia ser tudo e qualquer coisa ao mesmo tempo e ainda mudar de posição no momento seguinte. Era apenas um discurso vazio de oposição, que somada às más companhias, acarretava dúvidas no eleitorado de centro e forte resistência dos setores progressistas. Aécio Neves a criticava, por outro lado, tratando de lembrar do seu passado petista, como algo que a devesse envergonhar frente a um eleitorado radicalmente antipetista. Com a mesma velocidade que subiu, se espatifou nos mesmos patamares de 2010, fora do segundo turno.
Cabe ressaltar o papel dos ‘nanicos’. Luciana Genro do PSOL, merece o prêmio de revelação, ao bater duro em Dilma e Aécio, mas que não levou desaforo para casa do mineiro. Eduardo Jorge introduziu importante debate a respeito das legalização das drogas e também do meio ambiente, talvez com mais vigor que Marina. Pastor Everaldo e Levy Fidelix não merecem menção. Falta discurso, postura e base social. Ainda bem.
Aécio sobreviveu
Quando o jatinho de Eduardo Campos caiu, parecia ter caído na cabeça de Aécio. Se não embalava no início, com a entrada em cena de Marina, recuou para a casa dos 15%. No dia 1 de setembro, veio a público, em entrevista coletiva, reafirmar a sua campanha, que sofria com boatos de desistência ou um eventual recuo para Minas.
Com o processo de desconstrução de Marina, e embalado por melhor desempenho em um dos debates, quando a candidata nitidamente fraquejava, Aécio reconquista a fidelidade de parte do eleitorado tucano, que anteriormente havia flertado com o voto útil em Marina e surpreendentemente chega ao segundo turno.
2ºturno
Comemorando como uma vitória, Aécio aparecia liderando nos primeiro dias do segundo turno. Na sequencia, pesquisas encomendadas ao gosto do cliente garantiam o candidato tucano à frente e abrindo. Era tudo mentira. Na votação do primeiro turno, o ex-governador perdia em casa. Era um recado de Minas para o país. Turbinado artificialmente, o candidato tucano também passava pela fase da desconstrução.
Aeroporto na terra de parente, parente no governo, assessor do senado aos 17 , do pai e do avô, o currículo do candidato Aécio Neves não colaborava para alguém que empunhava o discurso moralista anticorrupção, que ressuscitou a expressão ‘mar de lama’, utilizada pela UDN de Carlos Lacerda para tentar golpear o governo Vargas.
Ademais, se o mote da eleição era a mudança, o voto no PSDB era guinar ao passado. Entre o risco alardeado do retorno da inflação e a lembrança de um período de estagnação e desemprego, – e da ameaça de redução de estado que os tucanos sempre representam – o povo optou pela continuidade.
A grande mídia ainda tentou. A revista Veja antecipa a edição do final de semana trazendo revelação ‘bombástica’ de que Lula e Dilma sabiam dos desmandos envolvendo a Petrobras, no âmbito da operação Lava Jato. A matéria não apresenta qualquer prova, a editora Abril, dona da revista, é impedida pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) de fazer campanha de divulgação e obrigada a conceder direito de resposta ao PT. Ainda assim, a publicação serviu para turbinar a campanha tucana e foi utilizada como panfleto, fotocopiado aos milhões, por correligionários de Aécio Neves.
Militância de esquerda, nas ruas e nas redes sociais, foi essencial em disputa apertada
Por volta das 20h do domingo, 26 de novembro, despontava o resultado, dando Dilma na frente, e assim se manteve até o fim da apuração. Terminava assim um dos mais eletrizantes episódios da história recente da política brasileira.
Reza a lenda que, cerca de meia hora antes da divulgação dos primeiros resultados pelo Tribunal Superior Eleitoral, teriam vazado a informação para Aécio Neves e sua campanha de que o mesmo havia vencido o pleito. Um alvoroço tomou conta do apartamento do candidato. ‘Selfies’ eram tiradas com o ‘novo presidente’. Clima de comemoração, rapidamente substituído por incredulidade e desânimo. Uma profunda ressaca.
‘3º turno’
Da ressaca sobreveio o ódio. Insuflados pelo colunismo ‘tea party’ e liderados por Lobão, Bolsonaro e outras figuras obscuras, a direita toma gosto pelas ruas e, em alguns finais de semana, levam alguns milhares a protestarem pela impeachment da presidenta reeleita. Os mais irresponsáveis clamam por ‘intervenção’ militar.
Por outro lado, prosseguem as investigações da Lava Jato que terminam com o encarceramento de diretores da Petrobras, lobistas e executivos das maiores empreiteiras do país.
Já passa da hora do Brasil discutir um novo modelo político e, principalmente, a forma de financiamento das campanhas. No sistema atual, quem paga a conta da democracia são as grandes empresas, que não o fazem por benemerência ou ideologia, mas visando vantagens em contratos diversos com o poder público, quando apresentam a amarga fatura. Sem mudança de modelo, ainda que se punam corruptos e corruptores da Lava Jato, as condições para que novos casos ecludam continuam postas, bem como a grande mídia permanece sedenta por novos escândalos capazes de abalar as estruturas da república. Financiamento público e o fim da contribuição de empresas, não só fecham a porta principal da corrupção, como resgata o voto do cidadão do sequestro dos grandes interesses econômicos.